sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Sobre o direito à raiva


Há um boi – com couro, pêlos, chifres e sua morosidade característica – comprimido entre as paredes internas do que chamo eu. Tenho corrido alguns quilômetros por dia e guardado dieta restritiva na esperança de fazê-lo recrudescer à inexistência. Falo sobre ele com quem não temo parecer ridícula. Eu sou ridícula. Reconhecer essa condição alarga minha humanidade.
Narro o fim do meu relacionamento para olhos carinhosos e acolhedores, com a paciência e a cumplicidade dedicada a quem precisa assentar o luto. Faço questão de dizer como foi tudo muito carinhoso, sem mágoas.
A versão que teço busca refutar a sensação de fracasso que vem na esteira do término. A mesma que necessita ser perscrutada atentamente até sabermos que nos foi vendida como subproduto da propaganda de margarina.
As horas vão tratando de decantar, no amálgama que vai cá dentro, alguns pontos de orientação que me levam a lugares tanto mais concretos que estes onde o rompimento é uma sonata triste e melodiosa, composta a dois, sobre o amor impraticável.
Um senso contraditório se esparrama por onde cheguem as extensões do meu corpo. O desejo de sentir raiva é proporcional à impressão de que isso não é “justo”. Afinal, talvez porque liberados de alguns pudores de envolvimento, erigimos uma despedida inacreditavelmente doce. Quiçá mais do que ousamos enquanto juntos.
O amor não é só redentor, apocalíptico. Na verdade, ele se sustenta mais na brandura que nas grandiosidades hollywoodianas que reforçam nossa educação romântica. Em algum momento – em muitos deles – os amantes vão se fazer mal. É esse o medo captado num brevíssimo segundo em que nos vemos vulneráveis: a ciência de que a dor causada pelo Outro há de ser mais assertiva e avassaladora, porque ele é conhecedor de nossas desproteções.
 E não é possível livrar-nos e ao Outro desse medo, por exemplo, com um “eu te amo” – por favor, não é a isso que essa frase serve. Aliás, ela não serve para nada: é uma inutilidade delicada. É mais sincero (e poético) não perdermos de vista que amar é prosseguir apesar disso. Amar é, num só tempo, machucar e afagar o Outro no que lhe for essencial. E deixá-lo nos fazer o mesmo.
O Outro nos faz mal com seu amor. Mesmo sem ter a intenção, e a recíproca é verdadeira. Mas então, se nos aborrecemos com algo provocado por seu amor/ódio, cumpre ao Outro nos roubar o direito à raiva. E deve fazê-lo se desculpando, reconhecendo suas falhas, nos impedindo de brigar.
Essa amabilidade conciliadora nada tem a ver com o afeto que o faltoso sinta por seu interlocutor. Não que este não exista. Mas é, antes, uma necessidade de autopreservação. Porque o causador da raiva não quer ser visto como “uma pessoa má”, nem lidar com as consequências de sua falta – uma avalanche de impropérios, o choro compulsivo, a imposição do desprezo a partir do silêncio.
É assim que algo inerentemente violento como um rompimento amoroso passa a ser narrado como gentil: com a cuidadosa supressão da raiva pelo carinho extraordinário destravado pelo fim. Como gritar com quem te afaga?
Olhar a situação por esse prisma não torna a fossa edificante, não ameniza a falta, não desfaz a consciência de não ser a namorada – “Neguinha”, “Amadinha”, “Coisa Minha” – de quem amo. Amo: o amor não vem com botão liga e desliga. Não desenha a possibilidade de enfiar a mão pela goela e arrancar o boi num único gesto, sem que ele me mate no momento em que o casco de sua última pata toque o sininho de minha garganta.
Quando muito, colocar as coisas nesses termos oferece algum alento: de tudo o que não tenho mais, essa raiva é minha. É o amor encruado e eu preciso me servir dela até que o mesmo amor passe de fase e me seja possível admitir de novo a figura do Outro, já recomposta e liberta do que não foi.

Enquanto isso, conto os grãos de minha próxima refeição e mantenho os tênis sempre prontos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Perfeito!!! Sem mais...