domingo, 28 de agosto de 2011

Inominável



São três: Cirene, Dafne, Lakshmi. Uma é todas, e todas são a mesma. Elas tecem, fiam, cozinham e, sobretudo, esperam. Constroem muros, fortes, paredes, mas se dedicam mais às janelas, portas, pontes. Desconhecem o ofício de erigir em linha reta ou com materiais sólidos. Estes são para os homens, todos e um.

Vagam pelo mundo desde o primeiro suspiro de um coração partido, e têm a sina de continuar acreditando. Perseguem o objetivo dos ingênuos, tão simples quanto irrealizável. Aqueles que assistem à sua jornada diriam que dançam, ou fazem qualquer coisa harmoniosa com seus tentáculos.

Não se enxergam senão através de retinas alheias, por isso passam o tempo sagrado diante dos espelhos. Confundem mais do que esclarecem e quando choram o vento estaca e as águas fazem pequenos círculos.

Moram em todos os corpos, porém devem abandoná-los, migrando de tempos em tempos, sob pena de sua fome devorar o mundo. Já aconteceu mais de uma vez, e elas tiveram de parí-lo. Como se sabe, a dor de externar é maior que a de engolir. De tão intensa, elas se metamorfoseiam em esgares até o irreconhecível.

São quem recolhe os corpos nos campo de batalha, escondem os avessos e velam, anônimas, o sono dos aflitos. Todos os serviços imperceptíveis sem os quais se instalaria o caos. São irmãs do caos e o disfarçam ora em vasos de flores, ora em pingentes sobre o peito.

Ninguém as conhece, nem elas umas as outras, embora todos se encontrem. Quando se tocarem, a colisão das delicadezas fará brotar o inominável.

Há mais mundo do que nossa percepção consegue captar



Há mais mundo do que nossa percepção consegue captar.

Deus (Oxalá, Alá ou que nome tenha, e que intuo olhando o horizonte pela minha janela, nos músculos cansados de dança ou amor, na gargalhada em companhia dos meus), por favor (pela dor, pelo pulsar do sangue, pela passagem do tempo que transforma os corpos mesmo após a morte - não há morte. Coisa sem nome, sem forma, sem começo, meio ou fim), me ajude, sempre, a me lembrar disso.

sábado, 20 de agosto de 2011

Seja invisível

É quando você sente todos os olhos pousando sobre você, quando seu mínimo gesto é interpretado e sua opinião considerada. É nesse momento em que o bom-senso está por um fio, e o ego inflado. Aí começa a derrocada do há de divino no ser.
A invisiblidade, o anonimato, a ignorância são dádivas. Só os grandes idiotas querem estar na berlinda, e mesmo estes, com uma mão no microfone e outra protegendo os ventrículos, se dão conta de que a morte é pública.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Ator




Por mais que as cruentas e inglórias batalhas do cotidiano tornem um homem duro ou cínico o bastante para fazê-lo indiferente às desgraças e alegrias coletivas, sempre haverá no seu coração, por minúsculo que seja, um recanto suave no qual ele guarda ecos dos sons de algum momento de amor que viveu em sua vida.

Bendito seja quem souber dirigir-se a esse homem que se deixou endurecer, de forma a atingi-lo no pequeno núcleo macio de sua sensibilidade, e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia, essa grotesca forma de autodestruição a que, por desencanto ou medo, se sujeita, e por aí inquietá-lo e comovê-lo para as lutas comuns da libertação.

Os atores têm esse dom. Eles têm o talento de atingir as pessoas nos pontos nos quais não existem defesas. Os atores, eles, e não os diretores e os autores, têm esse dom. Por isso o artista do teatro é o ator.

O público vai ao teatro por causa dos atores. O autor de teatro é bom na medida em que escreve peças que dão margem a grandes interpretações dos atores. Mas, o ator tem que se conscientizar de que é um cristo da humanidade e que seu talento é muito mais uma condenação do que uma dádiva. O ator tem que saber que, para ser um ator de verdade, vai ter que fazer mil e uma renúncias, mil e um sacrifícios. É preciso que o ator tenha muita coragem, muita humildade, e sobretudo um transbordamento de amor fraterno para abdicar da própria personalidade em favor da personalidade de seus personagens, com a única finalidade de fazer a sociedade entender que o ser humano não tem instintos e sensibilidade padronizados, como os hipócritas com seus códigos de ética pretendem.

Eu amo os atores nas suas alucinantes variações de humor, nas suas crises de euforia ou depressão. Amo o ator no desespero de sua insegurança, quando ele, como um viajante solitário, sem a bússola da fé ou da ideologia, é obrigado a vagar pelos labirintos de sua mente, procurando no seu mais secreto íntimo afinidades com as distorções de caráter que seu personagem tem. E amo muito mais o ator quando, depois de tantos martírios, surge no palco com segurança, emprestando seu corpo, sua voz, sua alma, sua sensibilidade para expor sem nenhuma reserva toda a fragilidade do ser humano reprimido, violentado. Eu amo o ator que se empresta inteiro para expor para a platéia os aleijões da alma humana, com a única finalidade de que seu público se compreenda, se fortaleça e caminhe no rumo de um mundo melhor, que tem que ser construído pela harmonia e pelo amor. Eu amo os atores que sabem que a única recompensa que podem ter – não é o dinheiro, não são os aplausos - é a esperança de poder rir todos os risos e chorar todos os prantos. Eu amo os atores que sabem que no palco cada palavra e cada gesto são efêmeros e que nada registra nem documenta sua grandeza. Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que é por eles que o teatro é eterno e que jamais será superado por qualquer arte que tenha que se valer da técnica mecânica.

Plínio Marcos - 1986

Texto do livro Canções e Reflexões de um Palhaço, e é a ampliação de um monólogo do personagem Bobo Plin, da peça Balada de um Palhaço.





sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Preserve os metacarpos



Ao contrário do que eu gostaria de acreditar, do que as propagandas procuram vender, ou as novelas queiram incorporar, tenho presenciado diversas restrições ao amor.
Alguém bate à minha porta chorando porque os pais desconfiam de seu relacionamento homossexual, e lhe aplicam torturas chinesas para arrancar-lhe o nome de seu "aliciador". Outro está comoventemente apaixonado e é recíproco, mas vai se casar e não pode deixar de honrar o compromisso assumido. Três corações numa caixa de fósforos.
Há ainda quem esteja casado a anos, e precise lidar a esquizofrenia de seu par, que o acusa de não amá-lo. Quem seja conduzido e apanhado frente ao trabalho e censurado caso esteja conversando com qualquer espécie do sexo oposto. Há quem tenha medo de amar demais e, por isso, prefira terminar o relacionamento "enquanto é cedo". Quem tenha sido dispensado por telefone de um namoro de anos. Quem passe o dia esperando uma ligação que não vem. Quem pense nos filhos, e somente neles.
Há uma comoção geral e indiscriminada pela morte do amor ou sua impossibilidade de realizar-se.
Para não partilhar dos ritos funerais, eu me sento e olho tudo com o dedo na tomada. As minhas falanges todas já se perderam, mas o complicado mesmo é encarar a vida tendo apenas metacarpos pra me proteger.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Não pega bem prá mulher


(No século XXI, no estado de São Paulo)

Andar do lado de fora da calçada.
Isso priva o brutamontes de exercer seu equivocado senso protetor.
Pagar a conta.
Expõe para o macho alfa que a manutenção da caverna hipotética não depende só dele.
Entender mais do que eles sobre determinados assuntos.
Denota capacidade de avaliar as merdas que eles fazem e, consequentemente, dar-lhes um pé na bunda.
Não casar.
Mulher é propriedade, como assim, uma vaca à solta?!
Cumprimentar os amigos do sexo oposto com um beijo.
Sem-vergonha! Fica se exibindo pros homens das outras.
Gostar de sexo.
Põe em cheque o sonho da fadinha indefesa, que precisa de um mentor para orientá-la sobre o que, por que, por quem e quando sentir.
Falar palavrão.
Destrói o mito da pureza feminina, que produz anjos para sempre delicados e gentis
Sentar de perna aberta.
Uma moça que expõe a genitália assim... já viu, né?
Dar conta de qualquer serviço supostamente masculino.
Só pode ser sapatão.
Ser sapatão.
É porque não achou quem comesse direito. Isso é falta de pica!