quinta-feira, 24 de junho de 2010

Boaventura de Sousa Santos


SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.2. Ed. São Paulo, Cortez, 2008.

A comunicação e a cumplicidade epistemológica assenta na ideia de que não há só uma forma de conhecimento, mas várias, e de que é preciso optar pela que favorece a criação de imagens desestabilizadoras e de atitudes de inconformismo perante elas. Tenho vindo a defender que não há conhecimento em geral nem ignorância em geral (Santos, 1995a: 7-55; 2000: 55-17; 2003a).Cada forma de conhecimento conhece em relação a um certo tipo de ignorância e, vice-versa, cada forma de ignorância é ignorância de um certo tipo de conhecimento. Cada forma de conhecimento implica assim uma trajetória de um ponto A, designado por ignorância, para um ponto B, designado por saber. As formas de conhecimento distinguem-se pelo modo como caracterizam os dois pontos e as trajectórias entre eles. Na modernidade ocidental, essa trajectória é simultaneamente uma sequência lógica e uma sequência temporal. O movimento da ignorância para o saber é também o movimento do passado para o futuro.

Como proponho noutros trabalhos (1995a: 25-27; 2000: 78-81), o paradigma da modernidade ocidental comporta duas formas principais de conhecimento: conhecimento-regulação e conhecimento-emancipação. O conhecimento-regulação consiste numa trajectória entre um ponto de ignorância, designado por caos, e um ponto de conhecimento, designado por ordem. O conhecimento-emancipação consiste numa trajectória entre um ponto de ignorância, chamado colonialismo, e um ponto de conhecimento, chamado solidariedade. Apesar de estas duas formas de conhecimento estarem igualmente inscritas no paradigma da modernidade a verdade é que no último século o conhecimento-regulação ganhou primazia sobe o conhecimento-emancipação. Com isto, a ordem passou a ser a forma hegemónica de conhecimento (de que o cânone é exemplo) e o caos a forma hegemónica de ignorância. Esta hegemonia do conhecimento-regulação permitiu a este recodificar nos seus próprios termos o conhecimento-emancipação. Assim, o que era saber nesta última forma de conhecimento transformou-se em ignorância (a solidariedade foi recodificada como caos) e o que era ignorância transformou-se em saber (o colonialismo foi recodificado como ordem). Como a sequência lógica da ignorância para o saber é também a sequência temporal do passado para o futuro, a hegemonia do conhecimento-regulação fez com que o futuro e, portanto, a transformação social, passasse a ser concebido como ordem e o colonialismo, como um tipo de ordem. Paralelamente, o passado passou a ser concebido como caos e a solidariedade como um tipo de caos. O sofrimento humano pôde assim ser justificado e nome da luta da ordem e do colonialismo contra o caos e a solidariedade. Esse sofrimento humano teve e continua a ter destinatários sociais específicos – trabalhadores, mulheres, minorias (e por vezes maiorias) étnicas, raciais e sexuais –, cada um deles a seu modo considerado perigoso precisamente porque representa o caos e a solidariedade contra os quais é preciso lutar em nome da ordem e do colonialismo. A neutralização epistemológica do passado tem sido sempre a contra-parte da neutralização social e política das “classes perigosas” (SANTOS, 2009.pp. 85-86).

Um comentário:

petrucia finkler disse...

"O conhecimento-emancipação consiste numa trajectória entre um ponto de ignorância, chamado colonialismo, e um ponto de conhecimento, chamado solidariedade."

lindo isso.