sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Agamben e Zizek

Dois autores que tenho lido e que, à sua maneira, buscam responder a diversas questões relativas à esse controverso emaranhado a que chamamos contemporâneo.

Giorgio Agamben - O que é o contemporâneo? e outros ensaios
Editora Argos, 2009


Pertence realmente a seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretenões e é, portanto, nesse sentido, inatual. Mas extamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (pp.58-59).

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, esta é a relação com o tempo que adere a este através de uma dissociação e um anacronismo . Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneoas porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, nao podem manter fixo o olhar sobre ela (p.59).

Os linguistas demosntraram que o insulto não ofende quem o recebe porque o inscreve numa categoria particular (por exemplo, aquela dos excrementos, ou dos órgãos sexuais masculinos ou femininos, segundo as línguas), o que seria simplesmente impossível, ou, de qualquer modo, falso. O insultp é eficaz exatamente porque não funciona como uma predicação constativa, mas sim como um nome próprio, porque chama na liguagem de um modo que o chamado não pode aceitar, e do qual, todavia, não pode se defender (como se alguém insistisse em me chamar de Gastone, sabendo que me chamo Giorgio). Isto é, aquilo que ofende no insulto é uma pura experiência da linguagem, e não um referimento ao mundo (pp.83-84).

O que é, de fato, a amizade senão uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação nem um conceito? Reconhecer alguém como amigo significa não poder reconhecê-lo como "algo". Não se pode dizer "amigo" como se diz "branco", "Italiano" ou "quente" - amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito (p.85).

Os amigos não condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar, um gosto) : eles são com-divididos pela experiência da amizade. A amizade é a condivisão que precede toda divisão, porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política (p.92).

Slavoj Zizek e Glyn Daly - Arriscar o imposível
Editora Martins Fontes, 2009
Vejo a ciência cognitiva como uma espécie de versão empírica do desconstrucionismo. O que se costuma associar ao descontrucionismo é a idéia de que não existe um sujeito singular, mas uma multiplicidade de processos dispersos que concorrem entre si; não há uma autopresentificação, mas sim a estrutura da difference etc. e se tomarmos essa estrutura da difference, com sua ênfase no adiamento, veremos que uma das conclusões interessantes da ciência cignitiva é que, literalmente, não vivemos no presente; há uma certa demora entre o momento em que nossos órgãos dos sentidos recebem um sinal externo e o momento em que ele é adequadamente processado no que percebemos como realidade, e depois reprojetamos isso no passado. De modo que nossa experiência do presente é basicamente uma experiência passada, mas reprojetada no passado (p.71)

O que venho elaborando no momento é a idéia paradoxal de que, do ponto de vista estritamente evolutivo, a consciência foi uma espécie de erro - uma disfunção da evolução -, e desse erro emergiu um milagre. Em outras palavras, a consciência se desenvolveu como um subproduto não intencional, que adquiriu uma espécie de função secundária de sobrevivência. Basicamente, a consciência não é algo que nos permita funcionar melhor. Ao contrário, estou cada vez mais convencido de que ela se origina no fato de algo sair terrivelmente errado - mesmo no nível mais pessoal. Por exemplo, quando é que conscientizamos de alguma coisa, quando é que temos plena consciência dela? Exatamente no momento em que algo já não funciona bem, ou não funciona de maneira esperada (p.76)

A consciência originária é impulsionada por certa experiência de fracasso e mortalidade - uma espécie de ruptura na trama biológica. E todas as dimensões metafísicas concernentes à humanidade, à auto-reflexão filosófica, ao progresso etc. emergem, em última instância, por causa dessa fissura traumática básica (p.77).

Acho que não devemos ter medo de extrair conclusões extremamente radicais. Por um lado, devemos abandonar a velha idéia humanista de que, haja o que houver, uma certa forma de dignidade humana será mantida ou reafirmada. Isso é pura tapeação. Essa visão presume, digmaticamente, que uma idéia básica de humanidade sobreviverá de algum modo a todas essas transformações sociotecnológicas. Mas também não confio na idéia oposta dos que acham que, até agora, fomos cerceados por uma certa estrutura patriarcal, e que a possibilidade de manipulações genéticas proporciona uma nova plasticidade, uma noca liberdade. Não sei qual será o resultado. Mas estou convencido de que, se essas tendências continuarem, o próprio status do que significa sermos huimanos se modificará. Até as coisas mais elementares, como a fala, a linguagem, o senso emocional etc., serão afeadas. Não devemos presumir nada, e seria inconseqüente ter uma postura otimista ou pessimista.
Dada a radicalidade da diferença sexual - de que o próprio senso de humanidade se estrutura pela diferenciação sexual - , se essa estrutura não sobreviver, sinto-me quase tentado a dizer que surgirá uma nova espécie. Talvel já não seja uma espécie humana: tudo depende da nova forma que a impossibilidade do Real assumir (p.107).

Duas décadas atrás, a revista semanal esquerdista alemã Stern fez uma experiência muito cruel: pagou a um homem e a uma mulher sem-teto paupérrimos para que tomassem banho, e ao homem para que se barbeasse minuciosamente, e depois os entregou aos melhores estilistas e cabeleireiros. Em seguida, numa de suas edições, a revista publicou duas fotos de página inteira dessas pessoas, lado a lado, primeiro em sua condição miserável e sem-teto, ambos sujos e o homem com a barba por fazer e depois vestidos por um grande estilista. O resultado foi eficazmente insólito: embora ficasse claro que estávamos lidando com as mesmas pessoas, o efeito da roupa diferente etc. foi de que uma de nossas crenças - a que diz que por trás da aparência diferente está uma mesma pessoa - ficou abalada. Não era apenas a aparência que estava diferente: o efeito profundamente perturbador dessa mudança de aparência foi que nós, os espectadores, de algum modo percebemos uma personalidade diferente sob ela (...) o que esse experimento minou foi extamente a crença no Fator x, no núcleo de identidade que responde por nossa dignidade e persiste através das mudanças de aprência. Em suma, de certo modo, esse experimento demonstrou empiricamente que (...) o núcleo da nossa subjetividade é um vazio preenchido por aparências (p.110).

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