quinta-feira, 13 de dezembro de 2007



Bastaria, no entanto, que eu estivesse dormindo no meu próprio leito e que meu sono fosse profundo, para relaxar-se a tensão do meu espírito; então este perdia o plano do local onde eu adormecera, e quando eu despertasse no meio da noite, como ignorasse onde me encontrava, nem mesmo saberia, no primeiro instante, quem era; tinha somente, na sua simplicidade primitiva, o sentimento da existência tal como pode palpitar no íntimo de um animal; era mais carente que o homem das cavernas; aí então a lembrança - não ainda do lugar em que estava, mas de outros onde havia morado e onde poderia estar - me chegava como um socorro do alto para me livrar do nada de onde não poderia sair sozinho; num segundo, eu passava por sobre séculos de civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, e depois de camisas de gola virada, recompunham aos poucos os traços originais de meu próprio eu.
Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade do nosso pensamento em relação a elas. A verdade é que, quando eu assim acordava, meu espírito se agitando para tentar saber, sem o conseguir, onde me encontrava, tudo girava ao meu redor no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mexer, buscava, segundo a forma de seu cansaço, localizar a posição dos membros para daí deduzir a direção da parede, a situação dos móveis, para reconstruir e denominar a moradia em que se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, dos joelhos, dos ombros, lhe apresentava sucessivamente vários quartos onde eu havia dormido, ao passo que em seu redor as paredes invisíveis, mudando de conforme o aspecto da peça imaginada, giravam nas trevas.

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido.
No Caminho de Swann. São Paulo: Ediouro, 1992. p.23

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