quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Meu pai


Sem que eu espere me vem a imagem de meu pai. Um pai jovem e usando grandes óculos de grau, algo como um cientista tendendo a artista louco, projeto do que ele nunca chegou a ser. Ele me olha entristecido, como se me acusasse de não tê-lo ajudado a ser. E eu sinto culpa.
Seria inútil lembrá-lo de que um dia eu o presenteei com bloco de papéis e lápis especiais e ele chorou, porque esse pai que me surge ainda não sabe disso. Neste tempo eu devo ter quatro ou cinco anos e nenhuma renda própria.
Eu sei lá o que queria dizer aquilo tudo, e nem ousava perguntar. Mas acompanhava curiosa a seriedade das suas mãos empenhadas no preparo das roupas brancas e do banho de ervas. Eram segundas, quartas e sextas.
Houve uma outra vez em que meu pai me apareceu assim, de forma tão presente. Eu havia terminado o meu sei lá que número de baseado e então eu o vi aparecer no quarto. Estava pálido, magro e triste e também me olhava, como agora, com olhos de santo martirizado. Eram quatro da manhã e eu esperei o amanhecer para ligar para casa. De lá ouvi minha mãe dizer que ele havia sido internado naquela madrugada.
Dispenso toda mística incutida nesse relato, meu pai sempre foi uma figura muito estranha. Não podia ter sido cientista, ou artista louco?
Ele montava à cavalo. Uma vez trouxe um bezerro para criar no quintal de casa. Bezerros crescem e podem ser assustadores quando escapam do cercado e vêm dar com a cabeça na porta da frente.
Uma vez ele desenhou um Cristo numa folha de papel A3, seu embrião artístico não detectado. Seria isso agora? Meu pai se confundindo com o desenho do Cristo martirizado?
Eu me lembro de tantas coisas, inúteis ou não. E no instante seguinte eu as esqueço, fazendo com que se lancem em direção a alguma espécie de limbo. Assim como essa imagem de meu pai que me escapa.

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