sábado, 17 de maio de 2008

4, 75



Vinha pelas ruas de um lugar inexistente, depois do último dia de aulas na semana e de perdido o ônibus das 16:00hs, o que significaria uma hora a mais, ociosa e sem muitos atrativos para chegar em casa, perdida numa cidade não tão vizinha.
Amaldiçoava o mundo, ou pelo menos aquele pequeno pedaço de continente inexpressivo, por não respeitar sua opção vegetariana e manter todos os seus estabelecimentos abastecidos apenas com salgados que levam carne.
Tudo o que queria - além de não ter perdido o ônibus - era um pão de queijo quentinho.
A cabeça latejando o eco das crianças, o mau-humor se presentificando quase como um estranho a quem se pode dar "bom dia" a contragosto, virou uma das poucas ruas dali e deu com um letreiro da Nobel.
Entrou resoluta e ainda se perguntando se não seria algum efeito semelhante às miragens nos desertos, e sentiu feliz ao avistar fileirinhas amarelo-claras dos mais belos pães de queijo.
Não havia ninguém no café, e ela se ouviu dizer "Oláááaá´?". Ao que foi respondida por outra fileira, agora de dentes também belos, encimados por dois olhos verdes.
Pediu o pão de queijo e um chocolate quente, comendo o pão de queijo muito rápido enquanto a dona dos dentes e dos olhos preparava o chocolate; ela mostrou uma caneca de vidro alta e transparente, perguntando se podia serví-lo ali. "Siiiiiiiiim".
Estava quente e as raspas de chocolate derretiam. Os olhos verdes lhe ofereceram uma colher para comê-las. Ela quis, e reparou nas unhazinhas curtas das mãos dos olhos quando ela veio lhe trazer.
Poderia ser uma exigência calcada na higiene, além de algum outro motivo que levaria seus pensamentos para lugares magnífcos.
Não pôde saber se foi o chocolate preparado de maneira tão caprichosa, ou a visão das unhas pequenas lhe conduzindo a pensamentos luxuriosos, ou ter se imaginado em Paris por alguns segundos, ou uma coisa embalando a outra e descendo quente e espessa pela sua garganta.
O fato é que foi tomada por uma felicidade repentina, difundida, circular. Algo semelhante a um orgasmo ou pós-orgasmo, quando tudo se dilata e relaxa. Uma explosão colorida de cansaço e sensação de acolhimento, como se houvesse mesmo outro corpo (talvez com dois olhos verdes e fileiras de belos dentes) e toda a superfície morna da sua pele envolvendo e aquecendo a dela.
- Bom ter encontrado essa Nobel aqui. Faz tempo que abriu?
- Pouco mais de uma ano (e um largo sorriso).
- Huuumm... (um espreguiçar de gato). Quanto deu?
- 4, 75. No caixa, por favor.
- Obrigada.
E ela de volta à rua, um tanto perdida e a dez minutos do próximo ônibus, flanando.

She was dying


Eu estava ajoelhada no chão da cozinha de minha casa sob uma bacia e a cada lado minha mãe e minha irmã mais velha. Eu estava de branco e tinha uma criança no colo, e misturava na bacia, com uma das mãos, leite em pó e água muito empelotados.
Enquanto isso, dizia à minha mãe que havia encontrado uma planilha antiga de anotações sobre minha saúde. Ela perguntava: "Algo sobre sua pressão arterial?" e eu: "Sim, eternamente baixa, 9:6".
Neste exato momento, todas nós olhamos em direção ao banheiro de minha casa, que agora é uma porta e dá para a rua. Lá passa correndo um homem com uniforme do exército em tons de cinza. Minha mãe chama por ele "O que houve dessa vez"?
O homem vem até nós. Está aflito. É meu pai, bem mais jovem. Ele diz não saber o que está havendo com as poucas mulheres que restam no mundo. Conta que a moça grávida de uma menina - eu me lembro de sua imagem festejada nos noticiários - está com um nódulo grande no seio. Ele olha para mim e eu compreendo que a moça grávida sou eu.


Minha mãe está desesperada e esta cena não tem som. Ela quer impedí-lo de alguma coisa, mas ele continua me olhando e, na esperança que eu não ouça ou não entenda, diz: "She was dying".