Desde que me
conheço por gente, tenho demência pela maternidade. Porque me ensinaram que ser
mulher é cumprir determinadas funções, e ser mãe é a maior delas. Depois eu
descobri outras possibilidades de, antes de mulher, ser gente. E mesmo que se
trate de um mundo hostil – talvez até por isso – ainda vejo porquês em criar,
com as devidas especificidades, arte, formulações e bichxs, humanxs ou não.
Eu não comprei
presentes para amanhã. A Dona Rose, minha mãe, mora longe e eu não vou visitá-la.
É também de longe que a gente aprendeu a respeitar o teor alienígena que
percebe uma na outra.
Nos milhões de
badulaques que a minha e todas as outras mães – talvez um dia eu também – vão ganhar,
o que se vende como homenagem é a insistência, nem tão velada assim, em
requerer submissão. A começar pela naturalidade com a qual se costuma
relacionar as noções de mulher e de maternidade.
Nesta associação
está contida a imposição de um comportamento “recatado” e “direito” que nos
impeça de “dar pra qualquer um” ou “só” por prazer. A busca deve ser por relações
duradouras, monogâmicas, possessivas e excludentes, a que chamaremos “amor”. A
imagem da mulher como mãe repele as mães solteiras e os casais do mesmo sexo
que têm filhx adotivxs. No quadro, figurado por madonas quase santas, só cabem os
casamentos encerrados em casas próprias e selados com homens que, preferencialmente,
provêm o lar. Afinal, o campo das equivalências fundadas automaticamente é
imenso e o binômio mulher/responsabilidades domésticas persiste.
É fato, o
mercado de trabalho é cada vez mais ocupado por mulheres. O que promove a abertura
incomensurável para mais uma fabulosa catalogação: a mulher-mãe-que-trabalha. E
este modelo não é menos cruel que o anterior.
Se a mulher mãe
opta por cultivar sua carreira, isso implica, na maioria das vezes, em engravidar
mais tarde do que se considera “normal”. Só por isso, ela “merece” a pressão de
quem quer netxs, sobrinhxs... O que, em compleições sensíveis (ou não), resulta
em medo. Um medo de que, pela idade, “algo” tão fantasmagórico quanto indefinido,
dê errado consigo e/ou com x bebê durante a gravidez. No parto. No pós-parto. Pela
vida afora.
Essa culpa imposta
assevera que, se a mulher trabalha, necessariamente, não é uma boa mãe. E essa
inabilidade é um problema dela, tão-somente. Não importa que as leis
trabalhistas deixem a cargo das empresas assegurar ou não o direito de
amamentar durante o expediente. Ou que a licença maternidade dure insuficientes
quatro meses, oferecidos somente às mulheres. Nós seremos extremistas se não engolirmos
a declaração constitucional de que a participação masculina na criação dxs
filhxs seja facultativa invés de implícita.
O mesmo Estado
que atesta essas condições decidiu, em 1996, que mulheres e homens solteiros
não podem, por vontade própria, proceder à esterilização. Segundo a lei, para
adquirir o direito à laqueadura ou vasectomia nos convênios particulares ou
pelo Sistema Único de Saúde, é preciso ser casadx, ter mais de 2 filhxs, mais
de 25 anos e OBTER A AUTORIZAÇÃO DO CÔNJUGE. Sim, a lei prevê que uma pessoa peça
formalmente à outra permissão para não ter ou não ter mais filhxs. Pela ordem "natural" das coisas, quem será
mais propensx a ter de pedir a quem?
As evidências de
que nossos corpos não nos pertencem são muitas em suas variações. Somente no
âmbito da maternidade, o aborto ainda figura como tabu e a defesa da
legalização nubla qualquer lampejo de bom senso. Como se falar a respeito incitasse
à matança indiscriminada. Como se não falar do aborto fosse suficiente para que
ele não acontecesse e tantas mulheres não sofressem, justamente, de uma matança
indiscriminada ao darem cabo de sua gravidez em condições insalubres.
A decisão sobre
onde, como e acompanhada de quem parir, essa sim, ainda é inteiramente nossa...
Sob a condição de que a gente não se oponha a agendar nossas cesarianas com
antecedência. E abdique dessas frescuras de querer intimidade no parto e
tempo para equalizar o nosso corpo e o dx bebê. Do contrário, alguém está
autorizadx a entrar em nossa casa e nos levar para o hospital fazendo uso não só
da força mas do que há de mais truculento. E nos acusar de irresponsáveis, e
forjar diagnósticos que atestem a periculosidade desse nosso capricho.
E depois, de
filhote nos braços, é bom tomar cuidado para não “embarangar”. Porque o “amor” perdoa
barriguinhas e carecas, mas não as nossas. Nós viemos ao mundo com o dever de
enfeitá-lo, portanto, temos de ser eternamente gostosas... Contanto que a gente
se dê ao respeito e não atraia olhares porque, né? Nós agora somos mães e, mais
do que nunca, temos de “nos dar ao respeito”. Confusx?
Por essas e
outras razões, eu não consigo ficar feliz com o “Dia das Mães”. Mesmo sob a
perspectiva de ter filhxs, biológicxs ou não. Não é que eu não tenha afeto pela
Dona Rose: mesmo xs alienígenas são capazes disso. Também não acho que vá
faltar carinho para xs alienígenas que eu criar, “eu tenho corações fora do
peito”. Mas também tenho uma certeza cada vez mais clara de que o “Dia das Mães”
não celebra essas singularidades do convívio e do respeito. Talvez o que ela
comemore seja a redução das tantas possibilidades de realização feminina à
maternidade. E eu prefiro não corroborar com isso.
Um comentário:
sabias palavras parabéns
Postar um comentário