É crucial que se saiba: em
cada brecha silenciosa do dia há a iminência de um perigo fatal. É preciso
evitá-las cuidadosamente, inventar duas ou três ocupações, e distendê-las no tempo, de modo que não haja
como cair em si. Experimente pentear os cabelos sistematicamente, e por
diversas vezes. Ajeite a gola com minúcia. Não se esqueça nunca de conferir as
horas e, com espanto, alardear o compromisso perdido, ou por perder.
Caso a ameaça de estar consigo
seja demasiado presente, com o telefone a postos, ligue para uma empresa de serviços e dedique-se a conseguir, para ontem, aquele
reparo/desconto/bonificação. Não desligue enquanto não vencer, pelo cansaço, pela argumentação, que seja; e lembre-se de parecer muito irritado.
Não facilite com as janelas,
proteja-se dos horizontes: beneficie-se do ar condicionado. Por Deus, tenha
cautela: para o dia ruir basta chegar em casa, sozinho ou acompanhado, e ter o
descuido de perceber a poeira das horas acumulada nos móveis. Ajuste a vigilância, um deslize e não terá
algazarra chegue. Nem música ruím, nem
grito de gol, nem a aceitação unânime dos seus amigos virtuais: a poeira se
deposita em nós, atrás dos olhos, naquele espaço em que nos sabemos nada.
Se você chegar a esse extremo descabido
– prova máxima da sua incompetência - , é bem capaz de começar a pensar na
vida, e pressentir obviedade de ser só. Pior: você saberá, como uma obsessão
infantil, que solidão não é um estado póstumo, resíduo de algo que não está.
Mas permanência.
Nesse ponto, lhe faltando o
senso do ridículo, você se meterá a artista, filósofo, cozinheiro, amante ou
qualquer atividade pouco prática, envolvendo alguns pares de incertezas. Então,
tudo estará perdido. Para sempre, ou até o dia seguinte.
Atenção: se somente o “para
sempre” lhe assusta, não ouse pensar no período da noite ao dia seguinte como suportável.
E, muito menos, por um encadeamento simplório de ideias, na curta duração que
separa um e outro como mal menor. Mantenha-se de posse do senso analítico e não
deixe escapar o detalhe: mesmo nesse caso você terá dormido – sonhado! –
miseravelmente.
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