Há um boi – com
couro, pêlos, chifres e sua morosidade característica – comprimido entre as
paredes internas do que chamo eu. Tenho corrido alguns quilômetros por dia e
guardado dieta restritiva na esperança de fazê-lo recrudescer à inexistência.
Falo sobre ele com quem não temo parecer ridícula. Eu sou ridícula. Reconhecer
essa condição alarga minha humanidade.
Narro o fim do meu
relacionamento para olhos carinhosos e acolhedores, com a paciência e a
cumplicidade dedicada a quem precisa assentar o luto. Faço questão de dizer
como foi tudo muito carinhoso, sem mágoas.
A versão que
teço busca refutar a sensação de fracasso que vem na esteira do término. A
mesma que necessita ser perscrutada atentamente até sabermos que nos foi
vendida como subproduto da propaganda de margarina.
As horas vão
tratando de decantar, no amálgama que vai cá dentro, alguns pontos de
orientação que me levam a lugares tanto mais concretos que estes onde o
rompimento é uma sonata triste e melodiosa, composta a dois, sobre o amor
impraticável.
Um senso
contraditório se esparrama por onde cheguem as extensões do meu corpo. O desejo
de sentir raiva é proporcional à impressão de que isso não é “justo”. Afinal,
talvez porque liberados de alguns pudores de envolvimento, erigimos uma
despedida inacreditavelmente doce. Quiçá mais do que ousamos enquanto juntos.
O amor não é só
redentor, apocalíptico. Na verdade, ele se sustenta mais na brandura que nas
grandiosidades hollywoodianas que reforçam nossa educação romântica. Em algum
momento – em muitos deles – os amantes vão se fazer mal. É esse o medo captado
num brevíssimo segundo em que nos vemos vulneráveis: a ciência de que a dor
causada pelo Outro há de ser mais assertiva e avassaladora, porque ele é conhecedor
de nossas desproteções.
E não é possível livrar-nos e ao Outro desse
medo, por exemplo, com um “eu te amo” – por favor, não é a isso que essa frase
serve. Aliás, ela não serve para
nada: é uma inutilidade delicada. É mais sincero (e poético) não perdermos de
vista que amar é prosseguir apesar disso. Amar é, num só tempo, machucar e
afagar o Outro no que lhe for essencial. E deixá-lo nos fazer o mesmo.
O Outro nos faz
mal com seu amor. Mesmo sem ter a intenção, e a recíproca é verdadeira. Mas então,
se nos aborrecemos com algo provocado por seu amor/ódio, cumpre ao Outro nos
roubar o direito à raiva. E deve fazê-lo se desculpando, reconhecendo suas
falhas, nos impedindo de brigar.
Essa amabilidade
conciliadora nada tem a ver com o afeto que o faltoso sinta por seu interlocutor.
Não que este não exista. Mas é, antes, uma necessidade de autopreservação. Porque
o causador da raiva não quer ser visto como “uma pessoa má”, nem lidar com as
consequências de sua falta – uma avalanche de impropérios, o choro compulsivo,
a imposição do desprezo a partir do silêncio.
É assim que algo
inerentemente violento como um rompimento amoroso passa a ser narrado como
gentil: com a cuidadosa supressão da raiva pelo carinho extraordinário
destravado pelo fim. Como gritar com quem te afaga?
Olhar a situação
por esse prisma não torna a fossa edificante, não ameniza a falta, não desfaz a
consciência de não ser a namorada – “Neguinha”, “Amadinha”, “Coisa Minha” – de
quem amo. Amo: o amor não vem com botão liga e desliga. Não desenha a
possibilidade de enfiar a mão pela goela e arrancar o boi num único gesto, sem
que ele me mate no momento em que o casco de sua última pata toque o sininho de
minha garganta.
Quando muito,
colocar as coisas nesses termos oferece algum alento: de tudo o que não tenho
mais, essa raiva é minha. É o amor encruado e eu preciso me servir dela até que
o mesmo amor passe de fase e me seja possível admitir de novo a figura do
Outro, já recomposta e liberta do que não foi.
Enquanto isso,
conto os grãos de minha próxima refeição e mantenho os tênis sempre prontos.
Um comentário:
Perfeito!!! Sem mais...
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