segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Lá em casa



Foi com a tia buscar os alicates de cutícula deixados para afiar. O homem atrás do balcão era um tipo falante, expansivo, simpático. Anunciou satisfeito: "Agora é só não deixar o marido usar eles pra cortar fio que duram bastante". A tia já separando o dinheiro respondeu, muito natural, como deve ser: "Lá em casa a gente não tem marido que é pra não ter esses aborrecimentos". O homem riu amarelo, constrangido dessa autossuficiência declarada. A tia não percebeu. Pagou e, de posse do pacote,  continuou o assunto com ela enquanto caminhavam de volta. Ela não prestou atenção na conversa. "Lá em casa" não era um lugar, mas as mulheres da família. Todas solteiras, uma divorciada. Os homens, ao contrário, casados a anos, mesmo que não exatamente felizes. Ela ruminando aquilo. Talvez fosse a insubordinação característica delas: todas agudas feito os alicates, e fortes. Ou sina, vai saber. Era ela também uma Pimenta. Uma tia em potencial. E os quase trinta anos ainda não davam conta de achar isso natural para si. Seria questão de tempo?

sábado, 7 de dezembro de 2013

Fazer da existência uma experiência estética


Allan Kaprow: Woman licking jam off a car

Preferir a sua à qualquer companhia.
Ter coragem para discordar, inclusive, dos seus pares.
Mesmo muito a fim, desistir de transar se isso for contra a sua autopreservação.
Não se culpar pela casa desarrumada em períodos de trabalho intenso.
Responder educadamente a ataques.
Fazer da existência uma experiência estética.
Estabelecer relações de coleguismo com seu pais.
Despedir-se sem enfatizar a tristeza.
Não deixar de fazer algo por falta de companhia.
Deleitar-se com as tantas possibilidades sexuais além da penetração.
Usar as roupas que quiser, sem encanar com o que elas realçam ou escondem.
Fazer da existência uma experiência estética.
Perdoar (a si, principalmente).
Dizer com todas as letras e diretamente para x(s) envolvidx(s) quando algo te fere.
Não desculpar-se se não houver motivos.
Desculpar-se quando houver motivos.
Empreender o exercício da tolerância.
Fazer da existência uma experiência estética.
Evitar o convívio com aquelxs que você não pode tolerar.
Abandonar discussões quando elas se tornarem uma questão de "ganhar" ou "perder".
Dizer palavrões cotidianamente.
Não gritar a não ser por felicidade ou contentamento.
Fazer da existência uma experiência estética.
Empenhar-se em aceitar o tempo dxs outrxs.
Agir de acordo com o seu tempo.
Ter SEMPRE uma boa playlist ao alcance.
Mover o corpo por puro prazer.
Arranjar tempo e maneiras de "fazer nada".
Empenhar-se em não participar de maus comentários sobre alguém ausente.
Presentear-se de quando em quando com sua comida preferida.
Fazer da existência uma experiência estética.
Oferecer ajuda.
Aceitar ajuda.
Dormir quantas horas quiser ao menos uma vez por semana.
Fazer da existência uma experiência estética.
Chorar quando essa for a única maneira de livrar-se da angústia.
Manter contato regular com quem você gosta, mesmo à distância.
Masturbar-se.
Assistir ao nascer e ao por do sol.
Ter em quem confiar.
Não ressentir-se se alguém prefere não estar contigo.
Fazer da existência uma experiência estética.
Visitar lugares, culturas e hábitos que não os seus.
Devolver o que tomar emprestado.
Não falar enquanto estiver irritadx.
Manter-se curiosx.
Não faltar ao comprometer-se com algo.
Fazer da existência uma experiência estética.
Num diálogo, olhar para a pessoa com quem conversa.
Desconfiar dos discursos pacíficos.
Agradecer.