segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Ocupe-se (mas não consigo)



É crucial que se saiba: em cada brecha silenciosa do dia há a iminência de um perigo fatal. É preciso evitá-las cuidadosamente, inventar duas ou três ocupações,  e distendê-las no tempo, de modo que não haja como cair em si. Experimente pentear os cabelos sistematicamente, e por diversas vezes. Ajeite a gola com minúcia. Não se esqueça nunca de conferir as horas e, com espanto, alardear o compromisso perdido, ou por perder.
Caso a ameaça de estar consigo seja demasiado presente, com o telefone a postos, ligue para uma empresa  de serviços e dedique-se a conseguir, para ontem, aquele reparo/desconto/bonificação. Não desligue enquanto não vencer, pelo cansaço, pela argumentação, que seja; e lembre-se de parecer muito irritado.
Não facilite com as janelas, proteja-se dos horizontes: beneficie-se do ar condicionado. Por Deus, tenha cautela: para o dia ruir basta chegar em casa, sozinho ou acompanhado, e ter o descuido de perceber a poeira das horas acumulada nos móveis.  Ajuste a vigilância, um deslize e não terá algazarra chegue. Nem música ruím,  nem grito de gol, nem a aceitação unânime dos seus amigos virtuais: a poeira se deposita em nós, atrás dos olhos, naquele espaço em que nos sabemos nada.
Se você chegar a esse extremo descabido – prova máxima da sua incompetência - , é bem capaz de começar a pensar na vida, e pressentir obviedade de ser só. Pior: você saberá, como uma obsessão infantil, que solidão não é um estado póstumo, resíduo de algo que não está. Mas permanência.
Nesse ponto, lhe faltando o senso do ridículo, você se meterá a artista, filósofo, cozinheiro, amante ou qualquer atividade pouco prática, envolvendo alguns pares de incertezas. Então, tudo estará perdido. Para sempre, ou até o dia seguinte.
Atenção: se somente o “para sempre” lhe assusta, não ouse pensar no período da noite ao dia seguinte como suportável. E, muito menos, por um encadeamento simplório de ideias, na curta duração que separa um e outro como mal menor. Mantenha-se de posse do senso analítico e não deixe escapar o detalhe: mesmo nesse caso você terá dormido – sonhado! – miseravelmente.